Ronaldo Medeiros, Nelsinho e o então prefeito Mário Bulgareli
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou recurso e manteve decisão em sentença de condenação contra acusados de "grave conduta" (conforme apontado nos autos) em ação de improbidade administrativa que se arrasta por mais de 15 anos e é referente à manobras para pagamento de 150 mil cartilhas "fantasmas" contratadas pela Prefeitura de Marília em junho de 2008, na gestão do ex-prefeito Mário Bulgareli.
O Ministério Público Estadual apontou que o dinheiro (R$ 88.500 - valor da época) do pagamento das cartilhas (que não foram confeccionadas) seria usado para bancar gastos com a campanha eleitoral de prefeito e vereadores naquele ano (2008).
Diligências do MP na Prefeitura constataram que nada havia sido feito ou entregue.
O valor do contrato só não chegou a ser pago porque o Ministério Público recebeu denúncia de fraude e suspendeu por liminar o pagamento da nota fiscal que já havia sido emitida pela empresa W.A Produções Artísticas e Publicidade Ltda, que figurou como ré na ação, junto com Nelson Virgílio Grancieri, o Nelsinho (então secretário municipal da Fazenda) e Ronaldo Cabral Medeiros (diretor de comunicação da Prefeitura, na época).
A juíza Ângela Martinez Reinrich, da 5ª Vara Cível do Fórum de Marília, acatou a denúncia do MP e ao final da ação condenou os réus ao pagamento de multa civil no valor de cem vezes o valor da remuneração percebida pelos réus funcionários públicos, no mês de setembro de 2008, proibição de contratar com o Poder Público e receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual sejam sócios majoritários, pelo prazo de três anos, além da suspensão dos direitos políticos pelo prazo de cinco anos e perda da função pública.
O valor da multa cívil, em valores corrigidos, seria de cerca de R$ 1,5 milhão para cada um dos réus. No caso das perda da função pública, apenas Ronaldo Cabral Medeiros seria atingido, já que é aposentado da Prefeitura e ocupa atualmente o cargo comissionado de diretor de comunicação da Câmara de Marília.
Nelsinho, que era servidor de carreira da Prefeitura (auxiliar de escrita), acabou preso por outros rolos no final de 2011 e foi exonerado. Ele chegou a ocupar a acumular as funções comissionadas de chefe de gabinete e secretário da Fazenda.
A W.A Produções Artísticas e Publicidade Ltda, aberta em 1988 para edição de jornais está baixada no cadastro da Receita Federal (deixou de existir).
DEFESA
No recurso de apelação, negado pelo TJ, os acusados alegaram, em síntese, cerceamento de defesa, em razão do julgamento antecipado da ação e que não houve ilegalidade na execução do contrato, bem como não agiram com má-fé. Pediram a anulação da sentença ou improcedência da ação.
VEJA A DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA/SP
10ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO
APELAÇÃO
COMARCA: MARÍLIA
5ª VARA CÍVEL
APELANTES: W.A. PRODUÇÕES ARTÍSTICAS E PUBLICIDADE LTDA. E OUTROS
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
JUÍZA: ANGELA MARTINEZ HEINRICH
JUÍZO DE RETRATAÇÃO.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
Município de Marília. Aquisição de cartilhas institucionais. Vícios na execução do contrato. Liquidação de despesa sem prévia entrega das mercadorias contratadas. Violação dos princípios que informam a administração pública. Elementos dos autos que demonstram a má-fé dos réus. Condutas que se subsomem ao artigo 11 da Lei nº 8.429/1992. Improbidade caracterizada. Inexistência de excesso quanto às penas aplicadas cumulativamente.
Sentença de procedência. Recursos não providos. Retorno dos autos, nos termos do art. 1.040, II, do Código de Processo Civil, para reexame da matéria após o julgamento do RE 843.989/PR. Manutenção do acórdão. Entendimento que está em conformidade com o decidido no Tema 1199 do Supremo Tribunal Federal. Acórdão mantido.
Trata-se de duas ações ajuizadas pelo Ministério Público, a primeira por ato de improbidade administrativa, a segunda com pedido de condenação em obrigação de não fazer cumulado com pedido de rescisão de contrato.
Elas foram ajuizadas em face da Municipalidade de Marília, Nelson Virgílio Grancieri, então Secretário da Fazenda, Ronaldo Cabral Medeires, então diretor de divulgação e comunicação, e W.A. Produções Artísticas e Publicidade LTDA. A r. sentença julgou-as procedentes para “declarar rescindido e de nenhum efeito o contrato administrativo” oriundo do pregão nº 1266-23 3 13/08 do Município de Marília, condenar a Municipalidade em obrigação de não fazer consistente em abster-se de efetuar o pagamento da nota fiscal nº 1009, reconhecer a prática de conduta ímproba que se subsome ao artigo 11 da Lei nº 8.429/92 e condenar os demais réus ao pagamento de multa civil no valor de cem vezes o valor da remuneração percebida pelos réus funcionários públicos, no mês de setembro de 2008, proibição de contratar com o Poder Público e receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual sejam sócios majoritários, pelo prazo de três anos, além da suspensão dos direitos políticos pelo prazo de cinco anos e perda da função pública.
Os réus apelaram. A ré W.A. Ltda. interpôs o recurso de fls. 1.013/1.135. Alega cerceamento de defesa, em razão do julgamento antecipado da lide. Sublinha que não houve ilegalidade na execução do contrato e que não agiu com má-fé. Pede o provimento do recurso para que a sentença seja anulada, ou sejam as ações julgadas improcedentes.
O réu NELSON GRANCIERI interpôs o recurso de fls. 1.041/1.052. Alega que o julgamento antecipado da lide implicou cerceamento de defesa. Assevera que a sentença é nula, pois não fundamentou a aplicação das penas impostas. Sublinha que não era seu dever verificar a entrega das mercadorias que, por isso, não praticou ato ilegal. Afirma que não estão presentes os elementos caracterizadores da improbidade administrativa, pois não houve dolo. Pede o provimento do recurso para que a sentença seja anulada, ou, as ações sejam julgadas improcedentes, ou, subsidiariamente, sejam reduzidas as penalidades impostas.
O réu RONALDO MEDEIROS interpôs o recurso. Alega que a ausência de prévio procedimento administrativo implica “nulidade procedimental”. Sublinha que a sentença é nula, pois houve julgamento antecipado da lide, não houve audiência e as penas impostas são desproporcionais. Afirma que não agiu com dolo e que não está caracterizado o ato de improbidade. Pede o provimento do recurso para que sejam acolhidas as preliminares arguidas, ou, sejam julgadas improcedentes as ações. Recursos tempestivos e respondidos, a D. Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento dos recursos. O acórdão de fls. 1147/1154 negou provimento aos recursos. Interpostos recursos especiais e extraordinários (fls. 1183/1194, 1199/1216, 1222/1228, 1233/1248, 1256/1285, 1290/1342), o Presidente da Seção de Direito Público devolveu os autos a esta Turma Julgadora, em atenção ao disposto no art. 1.040, II, do CPC, à vista do decidido no RE 843.989/PR, Tema nº 1199 do STF (fl. 1597). É O RELATÓRIO.
Não é caso de retratação. O acórdão consignou: Ao contrário do alegado pelo réu Ronaldo Medeiros, a inexistência de prévio procedimento administrativo não implica nulidade do processo. A Lei nº 8.429/92 não obriga, e tampouco poderia fazê-lo, sob pena de inconstitucionalidade (art. 5º, XXXV, CF), que a ação de improbidade seja precedida de procedimento administrativo. Ela dispõe sobre os procedimentos administrativo (art. 15) e judicial (art. 17), que são autônomos.
A r. sentença não ostenta o vício apontado pelo réu Nelson Grancieri. Diversamente do alegado, ela individualizou a conduta dos réus e aplicou as penas, observada a responsabilidade de cada um. Não houve violação do artigo 93, IX, da Constituição Federal. Como se poderá verificar pelas próprias razões de decidir adiante expostas, não havia necessidade de produção de novas provas, suficiente para formar a convicção do Juízo a documentação juntada aos autos. Foi correto o julgamento antecipado, improcedente a alegação dos réus de cerceamento do direito de defesa (art. 5º, LV, CF) e consequente nulidade processual.
A questão da proporcionalidade das penas aplicadas é de mérito e como tal será apreciada. Antes do exame do tema de fundo, cumpre fazer um breve histórico dos fatos.
O Ministério Público instaurou inquérito civil em 19.08.2008, após receber denúncia de que a Municipalidade de Marília havia contratado a ré W.A. Ltda. com o exclusivo objetivo de obter recursos para a campanha política de candidatos a prefeito e vereador.
Segundo a mesma denúncia, as cartilhas objeto do contrato jamais seriam entregues pela contratada. No inquérito, apurou-se que o Município contratou a ré W.A. Ltda., com base na ata de registro de preços nº 51/2008, para a confecção de cento e cinquenta mil cartilhas institucionais. Em 01.08.2008 a contratada emitiu a nota fiscal nº 1005, no valor integral do contrato, e a encaminhou para a Municipalidade, sem que, no entanto, as cartilhas tivessem sido entregues.
A referida nota fiscal foi cancelada e, em 15.09.2008, outra foi emitida, agora com o número 1009, também no valor integral do contrato (R$ 88.500,00).
Em 17.09.2008 o réu Ronaldo Medeiros declarou ter conferido e recebido cento e cinquenta mil cartilhas. Em 29.09.2008 o réu Nelson Grancieri “vistou” aquela nota fiscal. O valor foi incluído na “relação de compras efetuadas pelo sistema de pregão, pendentes de pagamento”.
Em 18.11.2008 o Ministério Público constatou que as cartilhas não haviam sido entregues à Municipalidade . Em razão disso, o Ministério Público ajuizou ação civil pública de obrigação de não fazer, cumulada com rescisão de contrato, em 26.11.2008, pedindo que a Municipalidade fosse condenada a se abster de efetuar o pagamento à ré W.A. Ltda.
A liminar foi deferida em 26.11.2008 . Em 27.11.2008, foi constatado, por oficial de justiça, que as cartilhas não tinham sido entregues à Municipalidade. No curso da demanda, em 03.02.2009, nova diligência constatou que apenas metade das cartilhas fora entregue à Municipalidade. Além disso, apurou-se, no inquérito civil, que as cartilhas entregues foram confeccionadas pela Boa Impressão Materiais Serigráficos Ltda. O breve histórico dos fatos evidencia as ilegalidades praticadas na execução do contrato. A subcontratação (no caso, da Boa Impressão Materiais Serigráficos Ltda.) não é admitida sem autorização da Administração (art. 72, Lei nº 8.666/93).
Do mesmo modo, não é admitida a entrega fracionada de mercadorias, sem que haja previsão no edital e na ata de registro de preços. No caso concreto, não havia nem autorização para a subcontratação nem previsão para a entrega fracionada. Diversamente do alegado pela ré W.A Ltda., a cláusula sétima da ata de registro de preços não autoriza a entrega fracionada das mercadorias. Ao contrário, ela prevê a responsabilidade do contratado para o caso de vícios relativos à quantidade. Também não procede a alegação de que houve mera terceirização e não subcontratação. O objeto do contrato era a confecção de cartilhas institucionais e não o serviço de layout de cartilhas. Por isso, ao afirmar que fez apenas o layout, a mesma ré confessou que transferiu o objeto do contrato a terceira pessoa. Trata-se de subcontratação, não autorizada pela Municipalidade. Não bastassem os vícios já apontados, a W.A. Ltda. tinha dez dias, após o recebimento da nota de empenho, para entrega das mercadorias. O empenho foi emitido em 18.06.2008 e, provavelmente, na mesma ocasião ela recebeu a respectiva nota. Ocorre que até fevereiro de 2009, ela só havia entregue metade das cartilhas. O atraso na execução do contrato é evidente. Por isso mesmo, está correta a sentença ao rescindir o contrato, nos termos dos artigos 77 e 78 da Lei nº 8.666/93.
Além das ilegalidades já apontadas, houve indevida liquidação da despesa. Com efeito, a liquidação só é admitida após a realização do serviço ou fornecimento da mercadoria (art. 63, §2º, Lei nº 4.320/64). Porém, no caso dos autos, os réus liquidaram a despesa sem que tivesse ocorrido a entrega das cartilhas. O réu Ronaldo alega que estava apenas antecipando o “trâmite burocrático” e que o pagamento só seria efetuado após a efetiva entrega das cartilhas. Todavia, a Lei nº 4.320/64 não autoriza tal “antecipação”. A má-fé está comprovada.
Em duas ocasiões a W.A. Ltda. apresentou nota fiscal sem entregar as mercadorias. Por outro lado, o réu Ronaldo Medeiros declarou ter recebido cento e cinquenta mil cartilhas, mas não recebeu nenhuma.
Já o réu Nelson Grancieri sabia que as cartilhas não tinham sido entregues quando vistou a nota fiscal e deu continuidade à liquidação da despesa. Tendo em conta o que ficou consignado, não era necessária a produção de outras provas. A improbidade está caracterizada.
Como o pagamento não chegou a ser realizado, não houve lesão ao erário, e a conduta dos réus se subsume ao artigo 11 da Lei nº 8.429/92. Os pedidos subsidiários, de redução das penas, também não podem ser acolhidos. A conduta dos réus foi grave. A lesão ao erário só foi evitada em razão da diligência do autor.
Por isso, as penas foram fixadas com comedimento e atenção às suas finalidades.
Não há que falar em excesso sequer da multa civil, mesmo porque, não tendo os apelantes esclarecido o valor de suas remunerações, não há como aquilatar eventual falta de razoabilidade na aplicação de multa correspondente a cem vezes aquele valor...
No caso concreto, o acórdão reconheceu que os réus praticaram conduta dolosa que violou os princípios da Administração Pública. Ele consignou que o Município de Marília contratou a empresa W.A Produções Artísticas e Publicidade Ltda. para o fornecimento de 150.000 (cento e cinquenta mil) cartilhas e que os réus Ronaldo e Nelson reconheceram o recebimento da mercadoria sem que ela fosse realmente entregue. Entre outros fundamentos, o acórdão também salientou que “A má-fé está comprovada. Em duas ocasiões a W.A. Ltda. apresentou nota fiscal sem entregar as mercadorias. Por outro lado, o réu Ronaldo Medeiros declarou ter recebido cento e cinquenta mil cartilhas, mas não recebeu nenhuma. Já o réu Nelson Grancieri sabia que as cartilhas não tinham sido entregues quando vistou a nota fiscal e deu continuidade à liquidação da despesa. Tendo em conta o que ficou consignado, não era necessária a produção de outras provas.
A improbidade está caracterizada.”. Constatada, portanto, a prática de ato de improbidade doloso, não há que falar na aplicação da Lei nº 14.230/2021.
Por tal razão, desnecessária a retratação... Pelo meu voto, mantenho o acórdão.
ANTONIO CARLOS VILLEN
RELATOR
(PARTICIPAÇÃO DOS DESEMBARGADORES TORRES DE CARVALHO E ANTONIO CELSO AGUILAR CORTEZ)
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