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  • Foto do escritor J. POVO- MARÍLIA

Justiça condena rapazes que xingaram e atacaram mulher transexual com extintor de incêndio em Marília


Dois rapazes acusados de ofender uma mulher transexual e atacá-la com jato de extintor de incêndio de veículo em Marília (em caso de repercussão nacional), foram condenados a 1 ano e 1 mês de detenção em regime aberto, além do pagamento de 10 dias multa (cerca de R$ 470). A pena foi substituída por sursis processual de dois anos. A decisão é do juiz Fabiano da Silva Moreno, da 3ª Vara Criminal do Fórum de Marília e cabe recurso.

O CASO

Conforme os autos, João Leonardo, de 20 anos e José Leandro, de 26 anos, foram incursos nos artigos 2º-A, parágrafo único, da Lei 7.716/89 (define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) e 147, do Código Penal (Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave) porque no dia 12 de julho de 2022, por volta das 23h30min, na Rua Nossa Senhora de Fátima, esquina com a Rua XV de Novembro, na Vila São Miguel, zona norte de Marília, injuriaram a vítima Rodrigo dos Santos, nome social Kelly (mulher transexual, de 33 anos), ofendendo-lhe a dignidade ou decoro com a utilização de elementos referentes à orientação sexual. Consta, ainda, que, nas mesmas circunstâncias, os denunciados ameaçaram Kelly com palavras e gestos.

A vítima estava realizando seu trabalho como profissional do sexo, quando foi surpreendida por um veículo VW/Gol, com três ocupantes do sexo masculino em seu interior.

O condutor do veículo (não identificado até o momento) reduziu a velocidade e um dos passageiros questionou “olha que bicha bonita, quanto tá o programa?”.

Ato contínuo, como Kelly respondeu que “não saía com três”, José Leandro, que estava sentado no banco do passageiro, acionou o extintor do veículo contra a vítima e a injuriou, dizendo “vai tomar no c., desgraçado, vai para o inferno”, enquanto o passageiro do banco traseiro, João Leonardo, filmava o ocorrido com um aparelho celular.

O terceiro indivíduo, que conduzia o veículo e que não foi identificado apesar das diligências realizadas, jogou o carro sobre a calçada onde estava a vítima, mas não a acertou, ocasião em que os denunciados a ameaçaram, dizendo “vai morrer, f.d.p, vai morrer”, tudo por conta da condição da escolha sexual da vítima.

Consta, por fim, que, no dia seguinte, o vídeo contendo as imagens do delito foi divulgado em redes sociais e jornais de grande circulação.

ACUSAÇÃO

Sustentou o Ministério Público que o contexto em que foram proferidas as expressões injuriosas evidencia o dolo na conduta dos denunciados, representado pela vontade de depreciar a honra da vítima com a utilização de elementos atinentes à orientação sexual. O Ministério Público, em alegações finais, requereu a procedência da ação, com a condenação dos réus, nos termos da denúncia.

DEFESA

A defesa dos réus, por sua vez, em alegações finais, requereu, preliminarmente, a declaração de ilicitude do reconhecimento fotográfico e pessoal realizado em solo policial, sustentando ter sido inconclusivo e não haver comprovação nos autos da realização, bem como pela inobservância do artigo 226, do Código de Processo Penal, e requereu a absolvição dos réus com fulcro no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal. Pleiteou a desclassificação da conduta de injúria homofóbica para aquela prevista no artigo 140, § 3º, do Código Penal, em razão da irretroatividade da lei penal mais grave.

DEPOIMENTO DA VÍTIMA

A vítima Kelly (que faleceu por complicações de saúde no dia 30 de setembro do ano passado) declarou que no dia dos fatos estava exercendo seu trabalho momento em que avistou um veículo gol de cor cinza, com três ocupantes do sexo masculino; que o veículo diminuiu a velocidade e em seguida o indivíduo que estava sentado no banco do passageiro sendo ele gordinho e branco passou a dizer "vem cá, olha que bicha bonita, quanto tá o programa?" e a declarante respondeu "eu não saio com três".

Disse que em ato contínuo o ocupante do banco passageiro disparou o extintor em direção da declarante e que neste momento a declarante percebeu que estava sendo filmada pelo ocupante do banco traseiro.

Kelly afirmou que de imediato se afastou e que na sequência o veículo deixou o local e, passados alguns minutos retornou e os ocupantes passaram a dizer "vai morrer" e proferir ofensas verbais. Falou que o condutor do veículo chegou a subir na calçada e que as ofensas e ameaças somente cessaram no momento em que a declarante começou a gritar pedindo ajuda aos seguranças da empresa Comasa.

Kelly relatou que no dia seguinte tomou conhecimento através de uma amiga que havia um vídeo em grupos de whatsapp em que a declarante sofre um ataque com extintor. No Plantão Policial reconheceu José Leandro como sendo a pessoa que acionou a válvula do extintor contra ela e João Leonardo como sendo a pessoa que estava no banco traseiro realizando a filmagem. Kelly não foi ouvida em Juízo, pois veio à óbito antes da realização da audiência de instrução, debates e julgamento

A Polícia Civil começou a investigar o caso e chegou até o motorista do Gol através de um internauta que comentou sobre o caso em uma redes social. João Leonardo foi intimado e confessou a autoria do delito.

Ele declarou que encontrou com a pessoa de prenome "Gabriel", que era o proprietário do veículo gol, junto com a pessoa de prenome "Lê", que o chamou para dar um rolê. Em dado momento, ambos pediram para ir até a Comasa, onde ficavam os travestis. Chegando lá, "Lê" foi conversar com um travesti, que se negou a conversar com ele e, então, "Lê" acionou o extintor contra o rosto do travesti. Falou que ele ficou atrás filmando e, em dado momento, "Gabriel", que conduzia o veículo, fez o contorno no quarteirão e retornou. João Leonardo disse que, no momento, "Gabriel" não tinha a intenção de atropelar a vítima Kelly, que foi somente para assustá-la. Ele disse que não sabia onde "Gabriel" morava.

Quando José Leandro foi indagado acerca dos fatos, ele falou que encontrou "Gabriel" e "Léo", que é o João Leonardo combinaram de sair para dar um rolê. João fala que foi "Gabriel" que pediu para ele acionar o extintor no rosto do travesti, fala que não fez nenhuma ofensa verbal contra Kelly e disse que "Gabriel" não retornou com o veículo para tentar atropelar Kelly. Os investigadores não conseguiram identificar "Gabriel".

DEPOIMENTOS DOS ACUSADOS

O réu João Leonardo, interrogado em Juízo, confessou os fatos. Disse que estava vindo da casa de um amigo seu e encontrou José Leandro. Então passou Gabriel, com o carro e os chamou para dar uma volta. Era meio de semana, então, se tivesse algo bom na cidade, seria lá no jardim universitário. No meio do trajeto, Gabriel inventou de passar lá. Quando olharam, o transexual, Kelly, mostrou os peitos, então Gabriel disse que ia voltar. Voltou, parou ao lado dele.

José Leandro conversou com ele, não sabe o que ele falou e o mesmo acionou o extintor em Kelly. Então saíram. Quem falou "vai morrer" foi Gabriel, que estava dirigindo. Acha que José Leandro acionou o extintor em Kelly para assustá-la. Gabriel não jogou o carro contra ela, só correu atrás. Depois disso, não foram atrás dela. Foram atrás dela só até a esquina. Gabriel a xingou. Não sabia que Kelly tinha falecido

O réu José Leandro, interrogado em Juízo, disse que estava na casa de um colega seu, no Santo Antonieta, e João Leonardo estava na casa de outro colega também. Estavam indo para casa e encontraram Gabriel, que perguntou se tinha alguma coisa na cidade. Era meio de semana, então decidiram ai ao campus da Unimar para ver se tinha alguma coisa para lá. João Leonardo entrou atrás e ele no banco do passageiro. Quando passaram pela Comasa, Kelly estava na esquina, e ela mostrou os peitos e falou alguma coisa. Então Gabriel teve a ideia de acionar o extintor nela. Deram a volta no quarteirão, chegaram perto dela, disse algo do tipo "bicha bonita" e ela veio. Quando ela viu que eles iriam jogar algo nela, ela virou o rosto, então acionou o extintor. Estavam em três no veículo. Gabriel subiu em cima da calçada para retornar, não com intenção de atropelar. Não conheciam Kelly.

Declarou que passaram por lá, ela mostrou os peitos, e por isso aconteceu isso. Não sabia "que poderia causar um problema", achou que o extintor seria inofensivo. Disse que quem teve a ideia foi Gabriel, não queria fazer, mas ele questionava se não estava com ele, então fez para não ficar a pé. Chamou Kelly e falou "nossa, que bicha bonita", então ela veio. No video, acha que é João Leonardo dizendo "vai morrer, vai morrer". Ela estava caracterizada de mulher, dava para saber que era travesti. Passaram e ela mostrou os peitos, não sabe se como provocação ou para atrair um programa para ela, mas, como estava zoando com eles, resolveram fazer isso. Acha que falaram "vai morrer" depois que acionou o extintor, quando ele foi fazer o retorno com o carro. Ela xingou, virou de costas e correu, e Gabriel subiu na calçada para fazer o retorno, mas a rua é estreita, acha que por isso ela achou que queriam atropelá-la.

Depois que ela correu foram embora. Foi só isso, não aconteceu nada mais grave. Não sabe há quanto tempo ela faz programa e se ali é ponto dela. Ficou sabendo pelas notícias que Kelly morreu, mas não sabe o motivo.

O JUIZ DECIDIU

"Pois bem, in casu, restou comprovado que os réus cometeram os delitos de injúria homofóbica e ameaça. Interrogados em Juízo, confessaram os fatos. É claro que a confissão dos réus, por si só, não é fundamento suficiente para lastrear sua condenação, devendo vir amparado em outros elementos de prova.

Vale dizer, conforme artigo 197 do Código de Processo Penal, “o valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância". No caso dos autos, realizado o referido cotejo, revelou-se coerência entre as palavras dos acusados e as demais provas amealhadas.

A vítima, Kelly – Rodrigo dos Santos, em sede inquisitorial, confirmou os fatos.

Ainda, considerando a gravação disponibilizada, não existem dúvidas acerca da autoria e materialidade dos delitos. Devidamente demonstrado o dolo dos réus de discriminar a vítima em razão de sua orientação sexual, tendo se consumado o delito de injúria homofóbica, que consistiu em acionar o extintor em direção à vítima pela sua condição de transexual. O animus injuriandi é latente em sua conduta, uma vez que a intenção era ofender a honra subjetiva da vítima, ferindo seu amor-próprio. Assim, restou demonstrada a injúria homofóbica praticada pelos acusados.

No entanto, no tocante ao pedido de desclassificação formulado pela douta Defesa, os fatos se deram em julho de 2022 e a Lei 14.532/2023 entrou em vigor apenas em janeiro de 2023, e não pode retroagir para alcançar fatos anteriores à ela. In casu a conduto dos réus configura o delito previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989, segundo entendimento adotado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal...

Insta salientar que, a despeito de os réus terem afirmado, em Juízo, que Gabriel, que dirigia o veículo, teria sido quem ameaçou Kelly, e não eles, é certo que anuíram às falas “vai morrer” ditas de dentro do veículo que ocupavam.

Ademais, a despeito do esforço da combativa Defesa, também não há que se falar em absorção do delito de ameaça, isso porque aplica-se o princípio da consunção quando o conjunto fático-probatório indicar que um dos crimes foi cometido apenas para se concretizar o seguinte, ou seja, que um deles foi crime-meio para se atingir o crime-fim, de maneira que o primeiro ficaria absorvido pelo segundo. Tal dinâmica não ocorre no caso dos autos. Observo que os bens jurídicos tutelados não são coincidentes e a prática da ameaça não constitui meio para a execução finalística do delito previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989, numa relação de interdependência e subordinação delitiva, razão pela qual não há que se falar em absorção de uma infração por outra. No mesmo sentido, não há que se falar em concurso formal entre os delitos praticados, uma vez que os réus, mediante mais de uma ação, praticaram dois crimes, de modo que as penas a eles impostas devem ser somadas. Havendo prova nos autos suficientes a comprovar a autoria e a materialidade delitiva, bem como presente a tipicidade das condutas perpetradas, a condenação dos réus é medida que se impõe...

Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a pretensão condenatória postulada na denúncia, para, desclassificar a imputação original, e, dando-os como incursos nas sanções dos artigos 20, da Lei 7.716/1989 e 147, do Código Penal, na forma do artigo 69, do Código Penal, Condenar os acusados ao cumprimento de pena privativa de liberdade de 01 (um) ano e 01 (um) mês, em regime inicial aberto, além do pagamento de 10 (dez) dias-multa cada um. Suspendo a execução da pena imposta pelo prazo de 02 (dois) anos, mediante o cumprimento das condições previstas nas alíneas a, b e c, do § 2º do artigo 78 do Código Penal. Expirado o prazo sem revogação, será declarada extinta a pena privativa de liberdade. Por fim, diante da fixação de regime aberto para o cumprimento de pena, bem como considerando a suspensão da execução da pena, poderão os sentenciados recorrer em liberdade da presente sentença".



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